1. OS NÍVEIS NORMATIVOS
Ainda que nas ordenações sociais mais remotas as normas jurídicas tenham sido, todas, do mesmo nível, essa igualdade não persistiu no processo histórico moderno e contemporâneo, em que o Estado monopolizou e desenvolveu o poder normativo jurídico. Com efeito, sobretudo após o advento da constituição escrita, cujas primeiras manifestações se deram nos Estados Unidos e na França, no momento histórico da transição da Idade Moderna para a Contemporânea, sucedeu que o poder normativo detido pelo Estado, assim como as normas jurídicas por ele postas, se foram desdobrando em níveis de normação, correspondentes a diferentes espécies e processos de atuação normativa do poder soberano. Hoje, em estados dotados de constituição escrita, como o Brasil, o poder normativo soberano pode ser discernido em três níveis básicos: o nível constituinte, o nível legislativo, o nível regulamentar.
No nível constituinte, estão as normas produzidas pelo poder constituinte, as quais entram na Constituição, ou para formá-la originariamente, por obra do poder constituinte originário, ou para reformá-la derivadamente, por obra do poder constituinte reformador. De qualquer modo, do poder constituinte dimanam normas primordiais. "Primordial" significa "primeiro na ordem". Essas normas são as primeiras na ordem jurídica em que são produzidas, impondo-se sobre as demais normas produzidas nessa ordem. São as normas constitucionais.
No nível legislativo, são produzidas as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos e as resoluções de caráter legislativo. Todas essas são espécies de normas primárias – espécies normativas primárias – assim consideradas porque se subordinam diretamente às normas constitucionais. São produzidas pelo poder legislativo. São as normas imediatamente infraconstitucionais.
No nível regulamentar, são produzidas as normas regulamentares, os chamados regulamentos: decretos, portarias, resoluções de caráter administrativo, regimentos, etc. São espécies de normas secundárias, assim chamadas porque ficam sujeitas às normas primárias e, como estas, também estão sujeitas às normas constitucionais. São produzidas pelo poder regulamentar, constituindo normas infralegais, subordinadas às normas primárias que ficam entre elas e a constituição. São as normas infraconstitucionais e infralegais.
2. AS ACEPÇÕES JURÍDICAS DO TERMO "LEI"
Obviamente, por coerência lógica, não se recusa chamar "leis" todas as espécies de normas primárias produzidas no nível legislativo, acima identificado, intermediário entre o nível constituinte e o regulamentar, do mesmo modo que se pode chamar de "regulamentos" as espécies produzidas no nível regulamentar.
Assim, nasce aqui um primeiro sentido jurídico mais estrito, no qual se referem como "lei" as normas primárias produzidas no nível legislativo, diretamente vinculadas às normas constitucionais e vinculantes das normas regulamentares, sendo estas e aquelas excluídas do conceito. É nesse conceito mais estrito que se usa o termo "lei", quando se fala em "processo legislativo".
Genericamente, processo é uma série de atos conjugados em função de um fim. Tecnicamente, o processo legislativo compreende uma série de atos conjugados para o fim de elaborar determinadas espécies de normas jurídicas, que por isso mesmo podem ser chamadas de leis.
Na linguagem técnica jurídica, o termo "processo legislativo" se aplica somente a certas categorias de normas: as normas primárias. É o processo pelo qual as espécies normativas primárias são postas e integradas no direito positivo. Este é o conjunto do direito posto pelo poder soberano agindo como poder normativo, ora abrigando normas que surgiram espontaneamente nos usos e costumes do povo, ora deliberando normas que surgem do próprio labor legislativo. Quais são essas espécies normativas primárias?
Já que o poder de pôr normas jurídicas – o poder normativo – está diversificado em três níveis – o poder constituinte, o poder legislativo, o poder regulamentar – daí decorre que o processo legislativo propriamente dito abrange só as normas primárias – as espécies normativas primárias – produzidas pelo poder legislativo, imediatamente vinculado ao poder constituinte e vinculante do poder regulamentar, sendo excluídas as normas produzidas por esses dois últimos poderes. Esse, o sentido técnico de "processo legislativo".
Nesse sentido, podem ser chamadas de leis todas as espécies normativas produzidas no nível legislativo, pelo poder legislativo, mediante o processo legislativo. Na Constituição Federal de 1988, à vista do seu artigo 59, essas espécies normativas são as seguintes: leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, de caráter legislativo, tais como as previstas no artigo 68, § 2 º, ou no artigo 155, § 2º, inciso IV, dessa Constituição. Portanto, no sentido técnico, devem ser excluídas do processo legislativo as emendas constitucionais, porque são produzidas, não pelo poder legislativo, mas pelo poder constituinte reformador, embora exercido pelos mesmos órgãos e pessoas que exercem o poder legislativo. Na verdade, as emendas constitucionais – quer isoladas, quer conjugadas em um procedimento de revisão da constituição – são elaboradas por "processo constituinte" e não por processo legislativo. Contudo, não se estranhe que o artigo 59 da Constituição brasileira inclua, também, sob o título de "Processo Legislativo", as normas constitucionais produzidas por atuação do poder constituinte derivado reformador, ou seja, as emendas à própria Constituição.
Essa inclusão se faz por um critério meramente processualístico e prático. Apóia-se no fato de que – entre nós, pois em outros países ocorre diferentemente – as emendas constitucionais são feitas, coincidentemente, pelos mesmos órgãos legislativos que fazem as demais espécies normativas arroladas no mesmo artigo 59, bem como por serem as emendas, tal como essas outras espécies, feitas por um processo coincidentemente previsto na própria Constituição, de forma imediata e direta. Essas coincidências somente são possíveis porque o poder que faz as emendas constitucionais, embora seja constituinte quanto ao seu efeito, pois produz normas de "status" constitucional, é constituído quanto à sua origem, pois foi criado e disciplinado na Constituição pelo poder constituinte originário do qual derivou, do mesmo modo que o poder legislativo.
Com isso, na Constituição brasileira, o processo legislativo compreende as séries de atos ordenados pela própria Constituição para elaboração das emendas constitucionais e das normas primárias infraconstitucionais. Porém, cumpre fazer uma ressalva. O mesmo critério processualístico que permite incluir as emendas constitucionais no processo legislativo também permitiria excluí-las, visto que o processo de elaborar emendas (processo constituinte derivado reformador) é qualitativa e quantitativamente diferente do processo de elaborar leis (processo legislativo propriamente dito), ainda quando fisicamente vêm juntos na mesma seção da Constituição. Caso contrário, a Constituição não seria rígida, mas flexível.
Feita essa ressalva, é plenamente válida a afirmação, acima, de que na acepção técnica podem ser chamadas "leis" todas as espécies normativas produzidas no nível legislativo, pelo poder legislativo, mediante o processo legislativo. Desse conceito estritamente técnico, hão de ser excluídas as emendas constitucionais, mesmo se no sentido meramente organizacional e procedimental estiverem incluídas no processo legislativo.
Há para o termo "lei" conceito mais estrito que este? Sim. Pois, finalmente, em sentido jurídico bem mais estrito, o nome "lei" se dá às leis complementares e às leis ordinárias e, por decorrência, às leis delegadas e às medidas provisórias.
Verdadeiramente, leis delegadas e medidas provisórias não constituem senão formas de exercício do poder legislativo ordinário pelo Chefe do Poder Executivo, que – no final de seu processo legislativo – resultam efetivamente em leis ordinárias, seja como produto de uma delegação legislativa do Congresso Nacional ao Presidente da República, seja como produto da conversão em lei pelo Congresso Nacional da medida provisoriamente adota pelo Presidente da República.
Sendo assim, porque equivalem a leis ordinárias em sua eficácia, as leis delegadas e as medidas provisórias não são propriamente espécies de leis, mas simples formas de transferência parcial ou provisória do poder-função legislativo das mãos do poder-órgão legislativo para as do poder-órgão executivo. Note-se aqui, por oportuno, que o termo "poder" comporta uma ambigüidade: ora, em sentido funcional, denota poder-função, ora, em sentido organizacional, poder-órgão. Empregado nessa última acepção, para designar os três Poderes básicos em que classicamente se divide e organiza o poder do Estado, costuma-se escrever com inicial maiúscula.
A seguir se fará apenas distinção entre aquelas que são, efetivamente, as duas espécies de leis no sentido maximamente estrito: lei complementar e lei ordinária.
Essa diferenciação será conformada com o direito constitucional brasileiro, lembrando-se no entanto que há países em que outros tipos de lei existem, como as "lois organiques" disciplinadas pelo artigo 46 da vigente Constituição da França, com características diversas das leis complementares brasileiras, como também das leis orgânicas que, no Brasil, dão constituição aos municípios.
3. LEI COMPLEMENTAR E LEI ORDINÁRIA
No direito constitucional brasileiro, entre lei ordinária e lei complementar são duas as diferenças básicas: uma, formal (quanto ao processo legislativo) e outra, material (quanto à matéria tratada).
Quanto ao processo legislativo, a diferença reside unicamente no "quorum" de aprovação. Conforme o artigo 69 da Constituição Federal, "as leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta", quer dizer, pelo voto favorável de mais da metade dos membros da casa legislativa. Já as leis ordinárias podem ser aprovadas por maioria relativa e até por maioria simples, que é a mais simples das maiorias relativas, em consonância com a regra do artigo 47 da Constituição Federal: deliberação tomada por maioria relativa aos que votaram (mais da metade dos votos), desde que esteja presente, no mínimo, a maioria absoluta dos que teriam direito a votar (mais da metade dos membros da casa).
Quanto à matéria tratada, o campo da lei complementar é sempre especificado expressamente pela Constituição, mediante expressões como: "nos termos de lei complementar", "lei complementar disporá sobre", "estabelecido (ou regulado) por lei complementar" e similares, que aparecem em diversos lugares do texto constitucional, como, por exemplo, no § 1º do artigo 40, no § 1º do artigo 43, no § 1º do artigo 45, no artigo 154, inciso I, no artigo 155, § 2º, inciso XII, no artigo 161, no artigo 163, no § 3º do artigo 184, no "caput" do artigo 192 e outros. Já a lei ordinária tem campo material residual, isto é, cabe-lhe dispor sobre todas as matérias restantes não atribuídas expressamente à lei complementar, podendo a Constituição, no entanto, expressamente, deixar acessível alguma matéria à lei ordinária, o que faz quando diz "a lei definirá", "nos termos de lei", "fixado por lei" e locuções similares, como se vê, por exemplo, no § 9º do artigo 42, no § 2º do artigo 40, no artigo 194, parágrafo único, no artigo 195, "caput", no mesmo artigo 195, §§ 7º e 8º, no artigo 213, "caput", no artigo 214, "caput", no artigo 215, § 2º, no artigo 221, inciso III, no artigo 224, "caput", no artigo 225, inciso IV e § 2º, no artigo 226, § 3º, no artigo 227, § 2º, no artigo 236, § 1º, nos artigos 238, 244, 245 e em muitos outros dispositivos.
Outras vezes há em que a constituição discerne e define a competência material não só entre lei complementar e lei ordinária, mas também entre lei federal, lei estadual e lei municipal, como faz, por exemplo, no artigo 219 e no artigo 220, § 3º, no artigo 236, § 2º.
4. CONCLUSÃO
Em suma, a lei complementar aprova-se por maioria absoluta e tem campo material sempre expresso especificamente, ao passo que a lei ordinária pode ser aprovada por maioria relativa, até pela mais simples das maiorias relativas, por isso dita maioria simples, e tem campo material remanescente ou residual, dentro do qual, no entanto, admite especificações expressas.